A CRÍTICA DA CONTRATAÇÃO
PERCE POLEGATTO
Mais do que um princípio básico numa boa argumentação, a coerência é essencial para trazer dignidade à vida em sociedade.
Millôr Fernandes começou um artigo dizendo que naquele momento tomava de um lápis, uma folha de papel, sentava-se à sua escrivaninha de madeira, enquanto contemplava sua estante de livros e pensava em escrever outro texto hipócrita contra a derrubada de árvores. Millôr é um crítico da incoerência, pois sabe muito bem o preço que pagamos por sermos enganados – por outros ou por nós mesmos.
Alguns jovens ostentam piercings, tatuagens, cabelos em cortes e estilos estranhos, como se isso significasse algum tipo de protesto ou uma maneira de diferenciar-se da maioria – até que eles se tornem a maioria também. Um amigo que leciona Psicologia revela-me que parte desses jovens de fato procura uma maneira de demonstrar fisicamente suas diferenças em relação à sociedade, seu inconformismo, sua maneira de dizer não à civilização. “Não” à civilização? Esses mesmos jovens têm computadores, aparelhos de som sofisticados, acompanham a indústria da música e do cinema, usufruem dos serviços e dos produtos mais bem-acabados da civilização. Outro dia vi um desses falando ao celular.
A coerência e a incoerência são velhas conhecidas dos estudantes do Ensino Médio. É fácil fingir quando se escreve. Ninguém é racista, ninguém duvida da capacidade da mulher, ninguém aprova o capitalismo ou as guerras – mas o capitalismo e as guerras continuam. Como? Sem o apoio de ninguém?
Durante uma aula de redação, pedi aos alunos que trouxessem jornais ou revistas com reportagens sobre a corrupção e a impunidade no Brasil, temas sempre atuais. Na aula seguinte, aproximadamente metade da turma havia cumprido o combinado. Pedi que erguessem os braços. Contei em silêncio, sem que percebessem, o número de estudantes que haviam colaborado. Em seguida, pedi que viessem à minha mesa para que eu lhes acrescentasse meio ponto à nota mensal.
A outra parte da classe protestou: isso não havia sido combinado. Não mesmo: eu decidira naquele momento, pretendendo recompensar os que levavam a sério as propostas do curso. Se eu o houvesse anunciado com antecedência, todos trariam textos, visando à pontuação extra, e aquilo deixaria de ter valor.
Conforme a fila avançava e os periódicos eram vistados, recontava mentalmente o número de alunos que atenderamà minha solicitação, calculado anteriormente. Em certo momento, fechei o diário de classe, dando por encerrada as anotações, pois já haviam passado por mim todos os que eu contara anteriormente.
Para minha surpresa, a fila ainda era extensa e nela estavam quase todos os alunos. Tomei de um deles uma revista que já havia passado por mim. Claro: eles estavam trocando entre si os jornais e as revistas para que todos conseguissem o tal meio ponto improvisado. O clima era de indignação geral. Eles se sentiam no direito de improvisar também uma maneira de burlar minha contagem e minhas anotações.
Quando todos se sentaram, eu questionei: “Como podemos começar a discutir e a criticar algo como a corrupção ou a desonestidade se aqui dentro mesmo, entre nós, vocês estão tentando me enganar?” Os rapazes do fundo enterraram-se sob seus bonés. Algumas garotas olhavam as próprias unhas.
Entretanto, eu não pretendia constrangê-los. Queria que soubessem que não podemos julgar ou condenar os chamados corruptos enquanto cada um de nós está sempre pronto a se corromper. Por meio ponto! “Muitos de vocês nem precisam de nota, podem dispensar esse meio ponto sem nenhum problema. E se fosse dinheiro?”, perguntei.“O que vocês fariam por alguns milhões? Leiam aí as notícias que vocês têm em mãos. É disso que elas tratam. De nós mesmos.”
Tenho um amigo ambientalista que fuma. Outro, antiamericano convicto, gosta muito de acessar a internet – em tempo: seu carro é da nova linha Ford. Geralmente as pessoas que dizem querer ser “elas mesmas” são as mais influenciáveis. Um de meus vizinhos diz que a televisão é o grande mal do nosso tempo – ele viu isso num documentário de sua TV a cabo. Amostras de atitudes e discursos contraditórios costumam ser extensas e não se aplicam apenas aos indivíduos da minha convivência.
Os estudantes aprendem que a incoerência mata qualquer argumentação. E quem já deixou a escola deve continuar atento a algo muito mais grave que uma redação ruim: uma sociedade formada por nossas sempre justificáveis contradições.
Alguns jovens ostentam piercings, tatuagens, cabelos em cortes e estilos estranhos, como se isso significasse algum tipo de protesto ou uma maneira de diferenciar-se da maioria – até que eles se tornem a maioria também. Um amigo que leciona Psicologia revela-me que parte desses jovens de fato procura uma maneira de demonstrar fisicamente suas diferenças em relação à sociedade, seu inconformismo, sua maneira de dizer não à civilização. “Não” à civilização? Esses mesmos jovens têm computadores, aparelhos de som sofisticados, acompanham a indústria da música e do cinema, usufruem dos serviços e dos produtos mais bem-acabados da civilização. Outro dia vi um desses falando ao celular.
A coerência e a incoerência são velhas conhecidas dos estudantes do Ensino Médio. É fácil fingir quando se escreve. Ninguém é racista, ninguém duvida da capacidade da mulher, ninguém aprova o capitalismo ou as guerras – mas o capitalismo e as guerras continuam. Como? Sem o apoio de ninguém?
Durante uma aula de redação, pedi aos alunos que trouxessem jornais ou revistas com reportagens sobre a corrupção e a impunidade no Brasil, temas sempre atuais. Na aula seguinte, aproximadamente metade da turma havia cumprido o combinado. Pedi que erguessem os braços. Contei em silêncio, sem que percebessem, o número de estudantes que haviam colaborado. Em seguida, pedi que viessem à minha mesa para que eu lhes acrescentasse meio ponto à nota mensal.
A outra parte da classe protestou: isso não havia sido combinado. Não mesmo: eu decidira naquele momento, pretendendo recompensar os que levavam a sério as propostas do curso. Se eu o houvesse anunciado com antecedência, todos trariam textos, visando à pontuação extra, e aquilo deixaria de ter valor.
Conforme a fila avançava e os periódicos eram vistados, recontava mentalmente o número de alunos que atenderamà minha solicitação, calculado anteriormente. Em certo momento, fechei o diário de classe, dando por encerrada as anotações, pois já haviam passado por mim todos os que eu contara anteriormente.
Para minha surpresa, a fila ainda era extensa e nela estavam quase todos os alunos. Tomei de um deles uma revista que já havia passado por mim. Claro: eles estavam trocando entre si os jornais e as revistas para que todos conseguissem o tal meio ponto improvisado. O clima era de indignação geral. Eles se sentiam no direito de improvisar também uma maneira de burlar minha contagem e minhas anotações.
Quando todos se sentaram, eu questionei: “Como podemos começar a discutir e a criticar algo como a corrupção ou a desonestidade se aqui dentro mesmo, entre nós, vocês estão tentando me enganar?” Os rapazes do fundo enterraram-se sob seus bonés. Algumas garotas olhavam as próprias unhas.
Entretanto, eu não pretendia constrangê-los. Queria que soubessem que não podemos julgar ou condenar os chamados corruptos enquanto cada um de nós está sempre pronto a se corromper. Por meio ponto! “Muitos de vocês nem precisam de nota, podem dispensar esse meio ponto sem nenhum problema. E se fosse dinheiro?”, perguntei.“O que vocês fariam por alguns milhões? Leiam aí as notícias que vocês têm em mãos. É disso que elas tratam. De nós mesmos.”
Tenho um amigo ambientalista que fuma. Outro, antiamericano convicto, gosta muito de acessar a internet – em tempo: seu carro é da nova linha Ford. Geralmente as pessoas que dizem querer ser “elas mesmas” são as mais influenciáveis. Um de meus vizinhos diz que a televisão é o grande mal do nosso tempo – ele viu isso num documentário de sua TV a cabo. Amostras de atitudes e discursos contraditórios costumam ser extensas e não se aplicam apenas aos indivíduos da minha convivência.
Os estudantes aprendem que a incoerência mata qualquer argumentação. E quem já deixou a escola deve continuar atento a algo muito mais grave que uma redação ruim: uma sociedade formada por nossas sempre justificáveis contradições.
Perce Polegatto é autor de A Conspiração dos Felizes (Papel Virtual, 2000) e professor em Ribeirão Preto (SP) no Colégio Auxiliadora e nas faculdades Reges, Unaerp e Barão de Mauá.
OLá Dalton, gostei e amei o seu texto, concordo plenamento.
ResponderExcluir"como podemos julgar ou condenar os chamados corruptos enquanto cada um de nós esta sempre pronto para corromper."
Parabéns.
Um abração
Já estava eu sentido falta desses textos mostrados nesse espaço. Você Dalton mostrou aos alunos e aqueles que aprenderam essa lição jamais vão esquecer. Nosso povo desde cedo aprende a usar a lei de Gerson. E nossos corruptos são alimentados por gente assim. Só quer ganhar não importa os métodos usados.
ResponderExcluirGrato Wanderley pelo coerente comentário.
ResponderExcluirRecuperar valores morais e éticos na escola é uma tarefa árdua, mas tem suas compensações. Vamos continuar tentando!
Um abraço.
Pois é, Antonio.
ResponderExcluirAcho até que Cabral trouxe um time de 'Gérsons' em uma das caravelas... (rsrs)
Grande abraço, poeta!
Muito bom ler seu texto amigo Dalton!
ResponderExcluirassunto como esse deveria ser incorporado às aulas em muitas escolas.
Forte abraço!
Grato "fs" pela visita e pelo comentário.
ResponderExcluirGostaria de ter o endereço de seu blog para visitá-lo. Fico aguardando.
Um abraço!
parabéns amigo pela pertinência do tema e pela oportuna abordagem. coerência em um mundo de contraditórios é uma faceta a ser desenvolvida e trabalhada pelo homem. isto é algo possível? vai saber neh?
ResponderExcluirOi,Dalton!!! Tudo bem? Você, como sempre, abordando temas interessantes e atualíssimos.
ResponderExcluirPerfeitas as argumentações do prof. Pellegato e compreensíveis "as espertezas" dos alunos-pobres coitados, na minha opinião,e vítimas dessa sociedade hipócrita em que vivemos.Quanto ao Millor,além de ser fanzoca de carteirinha, comungo com as ideias dele.
Parabéns, pelo post!!!
Um beijo procê
Um beijo procê.
Dalton, excelente post, muito bem escolhido, além de necessário. A profundidade do tema aponta para outro aspecto visível nas sociedades atuais que parecem sofrer de dissonânica cognitiva.Ou talvez seja este (mais)um mal dos séculos 20 e 21.
ResponderExcluirParabéns!
Angélica
Paulo, creio que o estabelecimento de uma coerência humana plena venha sendo almejada desde que Eva mordeu aquela famosa maçã.
ResponderExcluirPortanto, meu amigo, conviveremos com a contradição ainda por muitos séculos.
Grato pela visita e pelo excelente comentário.
Um abraço!
Com toda certeza, Angélica! A dissimulação e a incoerência, aliadas à insuficiência de perspectivas futuras reais, inibe consideravelmente a capacidade de aprendizagem dos nossos alunos, tanto os de escolas públicas, quanto os de escolas particulares (em nem tão menor escala assim).
ResponderExcluirSem dúvida, este é um dos grandes males que a educação contemporânea enfrenta.
Um beijo!
Oi Lau! Tudo azul aqui entre as montanhas das Minas Gerais.
ResponderExcluirConcordo também com as considerações do professor Polegatto, especialmente no que tange à incoerência instituída e promovida por essa nossa (podre)sociedade tão destituída de valores éticos básicos.
Valeu a visita.
Um beijo!
Dalton, querido amigo, que texto lindo, hoje mais uma vez me vi diante dos descalabros que acontecem na educação em São Paulo, acredite chegamos no umbral, são poucos os verdadeiros mestres e educadores, parece que estão se deixando levar pelo Leviatã, bjs
ResponderExcluirOi, Dalton!
ResponderExcluirSou a favor de acessorios, desde que achemos, de fato, que tem a ver com nossa personalidade.
Bjs!!
Com toda certeza, Daniele, o acessório sendo usado por uma questão de afinidade pessoal é muito válido.
ResponderExcluirValeu a visita. Um beijo!
Grato pela visita, Sueli!
ResponderExcluirA educação mineira não fica muito atrás não, apesar de alguns significativos avanços.
Aliás, educar no Brasil é uma tarefa para predestinados.
Grato pela visita. Um beijo!
Excelente texto!!Na verdade a corrupção existe porque existe também o corruptor."A bola"na mão do guarda de trânsito corrupto que o diga,mas só se fala mal do guarda...Grande beijo!
ResponderExcluirValeu, Zilda. Seu comentário foi muito perspicaz à pura realidade de nossa sociedade.
ResponderExcluirUm beijo!