domingo, maio 31

poetas

Ainda sobrevivem aos nãos

Ainda escrevem com os pés

Ainda correm com as mãos.





[Escrevi em Canoa Quebrada-CE # 1981]

terça-feira, maio 26

coerência

A CRÍTICA DA CONTRATAÇÃO
PERCE POLEGATTO
Mais do que um princípio básico numa boa argumentação, a coerência é essencial para trazer dignidade à vida em sociedade.
Millôr Fernandes começou um artigo dizendo que naquele momento tomava de um lápis, uma folha de papel, sentava-se à sua escrivaninha de madeira, enquanto contemplava sua estante de livros e pensava em escrever outro texto hipócrita contra a derrubada de árvores. Millôr é um crítico da incoerência, pois sabe muito bem o preço que pagamos por sermos enganados – por outros ou por nós mesmos.

Alguns jovens ostentam piercings, tatuagens, cabelos em cortes e estilos estranhos, como se isso significasse algum tipo de protesto ou uma maneira de diferenciar-se da maioria – até que eles se tornem a maioria também. Um amigo que leciona Psicologia revela-me que parte desses jovens de fato procura uma maneira de demonstrar fisicamente suas diferenças em relação à sociedade, seu inconformismo, sua maneira de dizer não à civilização. “Não” à civilização? Esses mesmos jovens têm computadores, aparelhos de som sofisticados, acompanham a indústria da música e do cinema, usufruem dos serviços e dos produtos mais bem-acabados da civilização. Outro dia vi um desses falando ao celular.

A coerência e a incoerência são velhas conhecidas dos estudantes do Ensino Médio. É fácil fingir quando se escreve. Ninguém é racista, ninguém duvida da capacidade da mulher, ninguém aprova o capitalismo ou as guerras – mas o capitalismo e as guerras continuam. Como? Sem o apoio de ninguém?

Durante uma aula de redação, pedi aos alunos que trouxessem jornais ou revistas com reportagens sobre a corrupção e a impunidade no Brasil, temas sempre atuais. Na aula seguinte, aproximadamente metade da turma havia cumprido o combinado. Pedi que erguessem os braços. Contei em silêncio, sem que percebessem, o número de estudantes que haviam colaborado. Em seguida, pedi que viessem à minha mesa para que eu lhes acrescentasse meio ponto à nota mensal.

A outra parte da classe protestou: isso não havia sido combinado. Não mesmo: eu decidira naquele momento, pretendendo recompensar os que levavam a sério as propostas do curso. Se eu o houvesse anunciado com antecedência, todos trariam textos, visando à pontuação extra, e aquilo deixaria de ter valor.

Conforme a fila avançava e os periódicos eram vistados, recontava mentalmente o número de alunos que atenderamà minha solicitação, calculado anteriormente. Em certo momento, fechei o diário de classe, dando por encerrada as anotações, pois já haviam passado por mim todos os que eu contara anteriormente.

Para minha surpresa, a fila ainda era extensa e nela estavam quase todos os alunos. Tomei de um deles uma revista que já havia passado por mim. Claro: eles estavam trocando entre si os jornais e as revistas para que todos conseguissem o tal meio ponto improvisado. O clima era de indignação geral. Eles se sentiam no direito de improvisar também uma maneira de burlar minha contagem e minhas anotações.

Quando todos se sentaram, eu questionei: “Como podemos começar a discutir e a criticar algo como a corrupção ou a desonestidade se aqui dentro mesmo, entre nós, vocês estão tentando me enganar?” Os rapazes do fundo enterraram-se sob seus bonés. Algumas garotas olhavam as próprias unhas.

Entretanto, eu não pretendia constrangê-los. Queria que soubessem que não podemos julgar ou condenar os chamados corruptos enquanto cada um de nós está sempre pronto a se corromper. Por meio ponto! “Muitos de vocês nem precisam de nota, podem dispensar esse meio ponto sem nenhum problema. E se fosse dinheiro?”, perguntei.“O que vocês fariam por alguns milhões? Leiam aí as notícias que vocês têm em mãos. É disso que elas tratam. De nós mesmos.”

Tenho um amigo ambientalista que fuma. Outro, antiamericano convicto, gosta muito de acessar a internet – em tempo: seu carro é da nova linha Ford. Geralmente as pessoas que dizem querer ser “elas mesmas” são as mais influenciáveis. Um de meus vizinhos diz que a televisão é o grande mal do nosso tempo – ele viu isso num documentário de sua TV a cabo. Amostras de atitudes e discursos contraditórios costumam ser extensas e não se aplicam apenas aos indivíduos da minha convivência.

Os estudantes aprendem que a incoerência mata qualquer argumentação. E quem já deixou a escola deve continuar atento a algo muito mais grave que uma redação ruim: uma sociedade formada por nossas sempre justificáveis contradições.
Perce Polegatto é autor de A Conspiração dos Felizes (Papel Virtual, 2000) e professor em Ribeirão Preto (SP) no Colégio Auxiliadora e nas faculdades Reges, Unaerp e Barão de Mauá.

quarta-feira, maio 20

lições




Se não sabes, aprende;

se já sabes, ensina.

[Confúcio]

terça-feira, maio 19

chovendo em são paulo


Chuva cai
Cai chuva
Entre cimentos e metais

Gente corre
Corre gente
Corre trem
Embaixo da terra
(embaixo da Terra)
Que não é terra
Já virou asfalto

Tudo cai
Todos correm
Terra que não é terra
(terra que não é Terra)
Também corre
Também cai

Agora nem é asfalto
É leito
Leito do rio
Rio da chuva
Sem cheiro de terra
(sem cheiro de Terra)




[Escrevi em São Paulo-SP # 1980]

segunda-feira, maio 18

18 de maio: dia nacional da luta antimanicomial



CARTA DA REDE NACIONAL INTERNÚCLEOS DA LUTA ANTIMANICOMIAL


Há pouco mais de vinte anos, a única forma de abordagem para o sofrimento mental existente no Brasil era o hospício, na sua pior forma: verdadeiros campos de concentração! Certamente, portanto, temos muito a comemorar. O número de leitos psiquiátricos no país reduziu-se à metade. Aprovou-se uma nova lei, que “dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental”. Foram criados mais de 500 CAPS (serviços abertos que acolhem os portadores de sofrimento mental grave).

A
III Conferência Nacional de Saúde Mental definiu diretrizes claras para a extinção do hospital psiquiátrico e sua substituição por um modelo assistencial comprometido com a liberdade e a cidadania. Contudo, a maior parte dos recursos destinados à saúde mental continua financiando os hospitais psiquiátricos e faltam, no âmbito governamental, iniciativas claras e decisivas para enfrentar tal situação.

Cumpre interpretar, portanto, que o compromisso do Estado brasileiro com uma
Reforma Psiquiátrica
efetiva deixa a desejar quando evita adotar as medidas indispensáveis para fazer cumprir as suas próprias leis. Esta indecisão mostra-se ainda mais inábil e grave, ao considerarmos que as novas legislações vigentes, as deliberações das Conferências Nacionais e todo o campo de defesa dos direitos dos portadores de sofrimento mental produziu-se a partir da organização e do impulso de segmentos da sociedade civil. Contando, embora, com a decisiva parceria e com o trabalho incansável do movimento social, o gestor ainda assim vacila justamente ali onde não poderia ceder!

Cabe, igualmente, interpelar os gestores estaduais e municipais quanto ao seu compromisso com a verdadeira reforma psiquiátrica, naqueles
estados e municípios que não realizam a redução de leitos em hospitais psiquiátricos, e mostram-se coniventes com o desrespeito aos direitos humanos nestas instituições.

sábado, maio 16

velhos e bons tempos


Em 1977 saí de Lorena para morar no Rio de Janeiro; no final de 1979 eu já estava hospedado na casa de amigos em São Paulo, no tradicional bairro da Bela Vista, aguardando a virada da década e as novas perspectivas estudantis e profissionais.Antes disso, tinha estado na capital paulista apenas cinco vezes, permanecendo, em média, sete a oito horas em cada uma delas.
A primeira vez, em 1968, foi uma inesquecível ‘viagem de negócios’. Eu, meus avós paternos - Vó Idialina e Pai João - mais o número máximo de pessoas, além de nós e do motorista, que cabiam em uma Kombi, fomos à grande loja do Baú da Felicidade, localizada na já e sempre efervescente Rua Augusta. A empresa e o programa do Sílvio Santos estavam no auge. Todas aquelas pessoas pra lá se dirigiram a fim de trocar seus carnês já quitados por mercadorias – o grande filão de fidelidade do inteligente empresário judeu. Dias antes da viagem eu fiz porque fiz de tudo para ser incluído na lista de passageiros. Sabem pra que? Eu desejava ardentemente que minha avó me presenteasse com a uma calça jeans – artigo de luxo para um menino lorenense de 10 anos que já se achava um homenzinho e já estava ligado nos Beatles e na Jovem Guarda. Como eu era o xodó (primeiro neto já viu, né?), embarquei. E trouxe, agarrada aos cambitos, a minha primeira calça Lee. "Legítima"!


A segunda aconteceu um ano depois, quando o meu Tio Cid (marido da irmã de minha mãe, Tia Ignez) – sãopaulino roxo – levou-me ao Estádio Municipal do Pacaembu para assistir uma rodada dupla do "Torneio Roberto Gomes Pedrosa" (antecessor do Campeonato Brasileiro). Para minha sorte, a primeira partida – iniciada às 18h00 – foi Santos X Bahia. O ‘peixe’ só empatou e eu vi Pelé jogando pela primeira vez... em carne, osso e genialidade.
Já o segundo jogo superou de longe essa emoção. Pela primeira vez eu – também já sãopaulino roxo – pude assistir pela prima ocasião o São Paulo Futebol Clube jogar e ganhar por três a dois da equipe do Fortaleza. Terto e Paraná fizeram os gols. Eu que até então os conhecia apenas através das fotos da Revista dos Esportes e ouvia seus nomes – num radinho de pilha – através das emocionantes narrações do Fiori Giliotti na Rádio Bandeirantes, estava ali pertinho vendo-os vestidos com a camisa tricolor, ‘comendo’ a bola com muita técnica e elegância.

As outras idas à ‘capital’, antes de lá fixar residência em 1980, aconteceram em 1973 (show do Alice Cooper no Anhembi), em 1974 (encontro de grupos escoteiros paulistas nos jardins do Museu do Ipiranga; tive também o privilégio de viajar, pela primeira vez, nos trens do recém inaugurado metrô paulistano) e em 1975 (com a galera do 'Colégio São Joaquim' de Lorena, numa participação em um concurso de fanfarras).

Então! Esses foram os meus primeiros passos na terra da garoa.

sexta-feira, maio 15

assim pode ser se lhe parecer ser


Nem toda cobra é peçonhenta
Assim como
Nem toda gosma é nojenta

Nem todo capim é braquiária
Bem como
Nem toda vela é luminária

Nem toda rapadura é melada
Assim como
Nem toda mulher é gelada

Nem todo pêssego é maduro
Bem como
Nem todo breu é escuro

Nem todo sonho é pequeno
Assim como
Nem todo voo é sereno

Nem todo rei é monarca
Bem como
Nem toda folia é fuzarca

Nem toda gema é de ovo
Assim como
Nem toda praça é do povo

Nem todo vaso é de barro
Bem como
Nem todo cuspe é escarro

Nem todo grão é café
Assim como
Nem todo otário é mané.







[Escrevi em Cruzília-MG # 2009]

quinta-feira, maio 14

brincando se aprende


"A efervescência da pesquisa decorrente da recente realização de minha monografia, somada à gama de conceitos apreendidos durante o curso, motivaram-me a ousar filosofar sobre um tema muito em pauta na educação contemporânea: a cada vez maior valorização do lúdico no processo de construção do conhecimento.
Virtualmente, esta reunião de ideias terá algum significado para o 'devaneio acadêmico', na medida em que forem alcançadas melhores formas de educar, principalmente na educação básica.

Considerando a aprendizagem como uma alteração do comportamento humano resultante de experiências anteriores – permanentemente mantidas – é possível afirmar que qualquer criança seja capaz de aprender.
Ao mesmo tempo, qualquer modalidade de aprendizagem provoca mudanças de comportamento periódicas, ou seja, faz com que o indivíduo altere sua forma de pensar e de agir praticamente em todo o tempo que viver.

Para compreender a relevância do aprender brincando, é preciso entender que as atividades motivacionais que empregam o lúdico têm, efetivamente, o poder de contribuir para o sucesso cognitivo, visto que priorizam o imaginário (aqui entendido também como o conjunto de símbolos de uma determinada sociedade), transmitem conhecimento e resgatam valores necessários à consolidação da personalidade do aluno.

Se tais atividades forem aplicadas de maneira sistematizada, crítica, inclusiva e integrada ao currículo formal, o educando deficitário de capacidade para aprender poderá ser contemplado com uma série de benefícios, especialmente o seu ingresso real no universo estudantil, a elevação de sua autoestima e a minimização de seus fracassos sócioescolares.

Trabalhar com o lúdico, portanto, é muito fácil e gratificante, pois além de prático, dá prazer. Ah, e ainda possui uma grande vantagem: apesar dos temas já abordados, outros muitos ainda podem ser criados, mesclando-se educador, inventividade, aprendiz e disciplina."


[O objetivo deste texto foi relacionar os conhecimentos sobre aprendizagem que acumulei ao longo de minha trajetória profissional às atuais tendências pedagógicas discutidas nas aulas de Metodologia do Ensino Superior - ministradas pelo Prof. Dr. José Gilberto da Silva - quando cursei pós-graduação em Psicopedagogia.]

terça-feira, maio 12

sanidade




"A diferença entre um louco e eu, é que eu não sou louco."


[SALVADOR DALÍ, in Diário de um Gênio]

sexta-feira, maio 8

a pesar

Ver o peso
Do que pesa
A leveza
De um corpo bonito
Indefeso

Ver o peso
Do que pesa
Enxergar
A estranheza
De um outro olhar

Ver o peso
Do que resta pesar
Apesar do sol
Na cotidiana certeza
De um novo luar.





[Escrevi em Belém-PA # 1982]

quinta-feira, maio 7

pé de roça

Lá no meu quintal
Tenho pés
Possuo pés
Pés perfumados
Pés desgarrados
Grandes pés
Suficientes pés
Pés carregados
Pés carregadores
Verdes pés
Adultos pés
Pés de maracujá
Pés de gente.







[Escrevi no Sobradinho, zona rural de São Thomé das Letras-MG # 2000]

domingo, maio 3

sim meu velho



Amarrar bombinhas
No rabo do gato
Ou atirar pedrinhas
Nas vitrines de sapato...

Sim meu velho, haja tolerância
Isto é a infância!

Roubar jabuticaba
Do quintal do espanhol
Ou enforcar a tabuada
Pra jogar futebol...
Sim meu velho, tenha paciência
Isto é a adolescência!

Matar-se de trabalhar
No escritório todo dia
Ou a fortuna tentar
Nos cartões de loteria...
Sim meu velho, esteja resoluto
Isto é ser adulto!

De pensão se manter
Jogando o incerto gamão
Ou de repente morrer
De mal do coração...
Sim meu velho, se ninguém te disse
Isto é a velhice!







[Escrevi em Lorena-SP # 1980]

verso perverso



Traz no anverso
Um sabor de segunda-feira
Derrotado pela terça
Parte do pensamento
Fagulhas em preto e branco
Cambaleadas sobre os balcões
Das perfumarias renais
Locadas em meu cérebro adverso.






[Escrevi em São Paulo-SP # 1983]

sábado, maio 2

dunas


Gato, porco e galinha
Soltos no mundo
Coberto de areia

Barata, lagarta e mosquito
Presos no bico
Coberto de areia

Homem, mulher e criança
Mortos de sede
Cobertos de areia.





[Escrevi em Canoa Quebrada-CE # 1982]