terça-feira, julho 14

férias


Meus amigos queridos, estou de férias. Ou quase isso.
Hoje foi o último dia letivo do semestre das duas escolas públicas nas quais leciono.
Serão exatos dezenove ocasos sem o contato formal com educandos dos ensinos fundamental e médio.
Tô voltando pra roça amanhã.
Em compensação, não poderei ficar totalmente sossegado lá na zona rural - como gostaria - em função da oficina de artes cênicas que dedico há oito anos aos portadores de transtornos psiquiátricos assistidos pelo "Ambulatório de Saúde Mental de Cruzília" - no Sul das Minas Gerais - onde também edito o jornal SAÚDE EM MENTE.
Em função disso, nas próximas semanas de julho terei que vir pra cidade num dia, trabalhar, dormir, amanhecer, trabalhar e retornar pro Sobradinho, bairro rural de São Thomé das Letras (município vizinho).
Mas vale muito a pena.
Minha varanda é separada da Serra do Seu Belico (cujo proprietário, por sessenta décadas, é o meu sogro, Sr. Abel Barbosa) por apenas trezentos metros...
Como lá eu só ouço rádio e não passo nem perto da sombra de uma máquina de datilografar, apenas entre essas idas e vindas poderei 'internetar' um pouquinho.
Desculpem, então, se as minhas visitas forem miúdas.
Um grande abraço mineiro, com o desejo de ótimas férias a todos que também estão nelas!


quarta-feira, julho 8

sem eira nem cheira


Pai solteiro
Meio-filho de estrangeiro
Ex-engenheiro
Agora biscateiro
Chegado a um terreiro
Anti-barbeiro
Conhecido maconheiro
Sempre sem dinheiro
Muito caseiro
Gentil cavalheiro
Por demais interesseiro
Querido companheiro
Cantor de chuveiro
Eis, por quase inteiro,
Algum jovem brasileiro.



[Escrevi no Rio de Janeiro-RJ # 1978]

segunda-feira, julho 6

benditas fomes


Benditas as mulheres famintas de amor, feitas de fios de renda, a tecer a vida na magia de pequenos gestos cotidianos: a cozinha limpa, o feijão catado, a cama arrumada e o vaso da janela regado de ternura. Elas conduzem a lua como um farol que, mês a mês, atrai seus corpos para rubros mares prenhes de vida.

Bendita a fome itinerante de homens ávidos de saber, curiosos quanto aos mistérios desse breve existir, e cujas mãos transmutam árvore em mesa, trigo em pão e leite em manteiga. Generosos, não precisam exibir espadas para provar que são guerreiros. Espalhada à sua volta, a sombra do aconchego aninha a família em segurança.

Benditos os que reverenciam o sol, a flor, a água e a terra, e trazem um coração ao ritmo das estações, confeiteiros de primaveras espirituais. Esses sabem encher suas taças de chuva e assar o pão no calor de amizades.

Benditos todos que se irmanam ao canto telúrico de Francisco e dançam ao ritmo alucinado dos girassóis de Van Gogh, impregnados da sabedoria búdica que não se algema à nostalgia do passado, nem se precipita na ansiedade do futuro. Eles saboreiam o presente como inestimável presente.

Benditas a manhã reinaugurando a vida após o sono; a idade esculpindo rugas carregadas de histórias; e a todos que, saciados de anos, não temem o convite irrecusável das bodas de sangue que, afinal, haverão de saciar a nossa fome de beleza.

Benditos os bem-aventurados na ânsia de ver repartido o pão da vida, sem encher a bolsa de sementes de podridão. Esses sentam-se à mesa com espírito solidário e têm direito à embriaguez do vinho que, transubstanciado, encharca o coração de alvíssaras.

Benditas as mãos que traduzem sentimentos e semeiam carícias, aplacando a fome de afeto. E os olhos repletos de luzes e as palavras floridas de beijos. E esse voraz apetite de silêncio, leve como o vôo de um pássaro.

Benditos a gula de Deus, os vulcões ativados nas entranhas, o arco-íris da pluralidade de idéias, a confraria das boas ações, os livros que nos lêem, os poemas ecoados no centro da alma, a rua deserta ao alvorecer, o bonde invisível, a vida sem medos.

Benditas a ira contra os pincéis que rasgam telas; a luxúria dos balés musicados por virtudes; a preguiça dos sinos de igrejas; a avareza de quem se guarda dos vícios; e a lenta maneira de fazer crescer plantas, cumplicidades e gente.

Benditas as fomes de transcendência, de prefigurações do eterno, de jovialidade do espírito, do bolo fatiado pelo cuidado materno, de vertigens místicas, de astros acelerados pela rotação de tantos sonhos redivivos.

Benditos os machados cientes de que seus cabos são feitos de árvore e as gaiolas abertas à liberdade; as agulhas que tecem o avesso da dessolidariedade e as facas de pontas arredondadas; a música de emoções indeléveis e os espelhos que refletem as mais saborosas oferendas da existência.

Benditas as fomes insaciáveis: de saber e de sabor; de despudor no amor; de Deus sob todos os nomes inomináveis. Fome de ócio sem culpa, de alegria interminável, de saúde e de prazer. Fome de paz. Saciada plenamente por justiça - a mais bendita das fomes, capaz de erradicar a fome maldita.


[Frei Betto]